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A DEMOCRATIZAÇÃO DO SABER

São três os principais marcos que afortunadamente nos legaram a Era do Conhecimento: a Biblioteca de Alexandria, a Imprensa de Gutenberg e a Internet.

Em grata reverência aos seus antepassados, apropriadas são as palavras de Isaac Newton (1643-1727): “Se pude me erguer tão alto, é porque me alcei sobre ombros de gigantes”. 

Ao longo da história, as formulações do saber, inicialmente tênues e difusas, percorrem um espinhoso caminho até atingir a magnitude do seu desenvolvimento. E em cada geração, novos andares são construídos sobre a antiga estrutura.

Alexandria, às margens do Mediterrâneo, reinou quase absoluta como centro da cultura mundial no período do séc. III a.C. ao séc. IV d.C. Sua famosa Biblioteca continha praticamente todo o saber da Antiguidade, em cerca de 700 000 rolos de papiros e pergaminhos. Seu lema era “adquirir um exemplar de cada manuscrito existente na face da Terra”. No entanto, o manuseio era restrito aos mais conspícuos sábios, poetas e matemáticos. Nela, fez-se a primeira tradução do Antigo Testamento, do hebraico para o grego. Sua destruição talvez tenha representado o maior crime contra a ciência e a cultura em toda a história da humanidade. Em 48 a.C., envolvendo-se na disputa entre a voluptuosa Cleópatra e o irmão, o imperador Júlio César e seus quatro mil legionários incendeiam a esquadra egípcia ancorada no porto. O fogo se propaga e destrói parte do acervo da Biblioteca.

Depois que o imperador Teodósio baixou decreto proibindo as religiões pagãs, o Bispo Teófilo – Patriarca de Alexandria, de 385 a 412 d.C. – determinou a queima de todas as seções que contrariavam a doutrina cristã. 

Em 640 d.C., o califa Omar ordenou que fossem destruídos pelo fogo todos os livros da Biblioteca sob o argumento de que "ou os livros contêm o que está no Alcorão e são desnecessários ou contêm o oposto e não devemos lê-los". 

A Biblioteca de Alexandria estava muito próxima do que se entende hoje por Universidade. E se faz apropriado o depoimento do insigne Carl B. Boyer, em A História da Matemática: “A Universidade de Alexandria evidentemente não diferia muito de instituições modernas de cultura superior. Parte dos professores provavelmente se notabilizou na pesquisa, outros eram melhores como administradores e outros ainda eram conhecidos pela capacidade de ensinar”. 

Se é inexorável a marcha do aprimoramento científico, artístico e até humano, continuamos convivendo com os mesmos fatores que destruíram a antiga Biblioteca: o belicismo e a intolerância religiosa. Bom seria se todos entendessem que o mundo é diverso, mas não adverso. Até meados do séc. XV, a reprodução do conhecimento se fazia essencialmente por meio dos monges copistas, pontuados em algumas dezenas de mosteiros e universidades. 

Em 1455, o ourives alemão Johann Gutenberg (c. 1400-1468) inventou a tipografia, cabendo-lhe o mérito de ser o primeiro, pelo menos no Ocidente, a utilizar tipos móveis metálicos feitos de uma liga especial de chumbo, estanho e antimônio. Projetou um novo tipo de prensa, baseada naquelas usadas para espremer uvas. Preparou uma tinta especial, à prova de borrões. Esse sistema operacional de impressão funcionou tão bem que perdurou praticamente inalterado até 1811, quando outro alemão, Friedrich Koenig, substituiu a mesa de pressão por um cilindro com acionamento a vapor e capaz da fantástica tiragem de 1100 cópias por hora.

Gutenberg dedicou um ano e meio para imprimir 200 lindíssimas Bíblias de 1282 páginas escritas em latim, utilizando tipos góticos com iluminuras. Sobreviveram apenas 12, impressas em pergaminho.

Tive a ventura de conhecer um exemplar na mansão de Huntington, nas cercanias de Los Angeles. Confesso que fiquei extasiado diante de sua beleza plástica e gráfica. Obra de artista e gênio. Henry Huntington adquiriu essa preciosidade em 1919 pela bagatela de US$ 50.000.

— Quanto vale hoje? – perguntei.

— Não há dinheiro que remova essa raridade – respondeu solicitamente a diretora da Huntington Library.

Com a imprensa, o mundo sofreu uma vigorosa transformação e, de pronto, influiu extraordinariamente sobre o Renascimento. Tamanho foi o alcance e a influência da tipografia de Gutenberg, que foi considerada a maior revolução tecnológica do milênio, pois propiciou a democratização do conhecimento, com impressão em escala de livros e jornais.

Nessa época, a Europa possuía cerca de 50 milhões de habitantes. Só 15% sabiam ler, pois raramente conseguiam livros. O engenho de Gutenberg se propagou espantosamente e fez dobrar em poucos anos o número de europeus alfabetizados. Em 1500, já circulavam meio milhão de livros.

Se vivemos hoje a Era do Conhecimento, é porque alçamos sobre ombros de gigantes do passado – reiterando a afirmação de Isaac Newton. 

A internet representa um marco histórico e a mais democrática e ampla forma de acesso ao saber e à pesquisa. A web torna disponíveis conteúdos técnicos e pedagógicos precisos, com visual atraente e em movimento. Em contrapartida, metade de seus bites é descartável, é entulho, é lixo ou fútil às nossas crianças ou jovens.


O crescente desinteresse pelo ensino tradicional é um fenômeno que ocorre no mundo todo. O ambiente hermético “da oralidade e do impresso”, antes prevalecente nas salas de aula, hoje é compartilhado pelas novas tecnologias educacionais. Entre elas, talvez a maior mudança de paradigma tenha sido causada pela internet, a qual representa uma ruptura com os consagrados modelos pedagógicos. Provavelmente não seria exagero dizer que cabe a divisão a.w. (antes da web) e d.w. (depois da web).

Um belo exemplo do uso da rede vem do casal Bill e Melinda Gates: para a filha mais velha, de dez anos, os dois estabeleceram o limite de 45 minutos por dia. Sábados, domingos e feriados um pouco mais: uma hora. Ao proferir uma palestra no Canadá, Bill Gates conta que a filha protestou:

— Mas pai, vou ter este limite por toda a minha vida?

— Não, quando sair de casa, você poderá definir seu próprio tempo de uso do computador – responde Bill Gates, arrancando risos do auditório.

Não há como negar que a internet é um poderoso agente de transformação do nosso modus vivendi et operandi. Somente no Brasil, somos 32 milhões de usuários, de modo que o nosso país é líder mundial em tempo de navegação: 21 horas e 39 minutos por mês.

Esse número equivale a 43 minutos diários. Seria aceitável, se não fosse o fato concreto que a maioria dos jovens passa de duas a quatro horas diante do computador, sacrificando a sociabilização, a cooperação doméstica, a compleição física e, sobretudo, os estudos e as boas leituras. “Meus filhos terão computadores sim, mas antes terão livros” – já há algum tempo apregoava o próprio Bill Gates.

Com a internet, pouco se cria e muito se copia! Boa parte dos trabalhos escolares são determinados pelo “ctrl + c” e “ctrl + v”.

O professor atualizado muitas vezes fareja a cópia. Que tal fazer uma arguição oral ou uma resenha manuscrita do conteúdo apresentado? Mas não vamos dramatizar, pois, quantos de nós – quando estudantes – copiávamos os trabalhos escolares dos livros, enciclopédias, revistas? Ou do colega que já havia passado pela disciplina?

Por isso, cabe ao educador incluir no seu trabalho pedagógico algumas tarefas: primeira – orientar que a cópia é uma atitude que desrespeita valores e direitos autorais; segunda – sugerir ao aluno bons sites sem se esquecer de sugerir bons livros; terceira – sempre incentivá-lo para que desenvolva o senso crítico. 

Quanto à força e abrangência da internet, vale um depoimento pessoal. Em 2001, no site www.geometriaanalitica.com.br, hospedei 498 páginas para estudantes de Engenharia e Matemática: cônicas, quádricas, superfícies, vetores, planos, retas, etc. Para minha surpresa, um contador internacional registrou centenas e centenas de acessos diários, oriundos de 58 países. “Navegar é preciso”, mas também é preciso ter discernimento do moderno canto da sereia: o fascinante – e falacioso – mundo do www. 

Em tempo: A frase “Navegar é preciso, viver não é preciso” tem como autor Fernando Pessoa ou Luís Vaz de Camões? Veja a resposta no Google em 0,29 segundos. 

Paradoxalmente, vivemos ainda uma fase de exclusão digital. Longe portanto do homo digitalis. Ao contrário do que se apregoava, o gueto tecnológico entre os países se ampliou. Na população, as desigualdades socioeducacionais permanecem inalteradas.

“Aprender é como parto: é uma coisa linda, mas dói”, ensina o pedagogo Pedro Demo. Para retirar uma comunidade do atraso não basta o aporte substancioso de recursos tecnológicos e financeiros. Requer pessoas comprometidas e altruístas, para alterar a cultura e o status quo de latência, apatia e falta de iniciativa. Requer professores motivados, entusiasmados, com disposição alegre e com visão holística. Sem isso, é exigir que a comunidade levante seu corpo puxando os próprios cabelos.

Jacir J. Venturi Diretor de escola, professor da UFPR por 25 anos e da PUCPR por 11 anos. Cidadão Honorário de Curitiba. Autor dos livros Álgebra Vetorial e Geometria Analítica (8.a edição) e Cônicas e Quádricas (5.a edição).

Jacir Venturi
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