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Somos um pouco de cada amigo que temos
De início, gostaria de contar uma pequena história. Na véspera do casamento do filho, seu velho pai o chama para uma conversa: Amanhã você vai se casar, vai ter uma esposa, depois filhos que passarão a ser a prioridade em sua vida. Mais tarde, seus filhos farão exatamente o que você está fazendo comigo e que eu fiz com o seu avô. E o que será de você? Por isso, nunca se distancie dos amigos. Hoje você não compreenderá essa importante lição, mas, repito, dedique tempo aos amigos.
E muito mais necessários eles serão à medida que você for envelhecendo. É com eles que você vai rememorar boas histórias, dar gargalhadas gostosas, falar de política e futebol, contar segredos, esquecer frustrações, angústias e ingratidões. Conselhos sábios de um velho pai, pois muito do que somos devemos aos amigos, e quando se perde um amigo – seja pela morte, seja por circunstâncias alheias à nossa vontade – é um pedaço de nós que se vai. Ah, como dói! E não é dor física. Por que os amigos não são eternos?
Amigos são os irmãos que nos damos, ao passo que os irmãos são os amigos que Deus nos dá – parafraseando um engenheiro carioca. Pessoas tóxicas há sim, e muitas, entretanto os amigos são medicinais, pois curam as nossas mazelas pelo simples fato de estarem juntos de nós. Amizade é cumplicidade, disposição para todo tipo de ajuda, reciprocidade de afetos, confiança, troca de experiências e lembranças de boas histórias em comum. E uma relação de amizade adulta será vitoriosa na medida do diálogo, das concessões mútuas e até mesmo de tolerância. Tal qual o amor, a amizade é uma roseira em seu jardim: se há a beleza e o perfume das flores, também os espinhos que por vezes nos machucam.
E qual a diferença entre "eu gosto de ti" e "eu te amo"? – questionou um discípulo ao mestre Buda, lá pelo longínquo ano de 550 a.C. Eu agora peço vênias pela licença poética que pratico na resposta dada por Buda: quando tu gostas de uma flor, tu a arrancas e a levas contigo para que contemples a sua beleza e seu aroma. Mas se tu amas a flor, tu a cultivarás com todo o teu zelo e carinho. Cabe recordar que Buda, aos 26 anos, abandonou uma vida de riquezas e luxúrias do palácio da família em busca da elevação espiritual.
Corroboram com este pensamento os antigos gregos, para os quais a amizade é uma variação do amor – um amor temperado pela razão, que denominavam philia. Aristóteles se faz oportuno ao afirmar que "ninguém escolheria viver sem amigos, mesmo se tivesse todos os outros bens e a nobreza". Sim, sem amigos a vida se tornaria insignificante.
Epicuro, outro filósofo helênico e que recebeu o epíteto de Apóstolo da Amizade, quando perguntado sobre o que se deve fazer para uma vida feliz, respondeu que, "para a felicidade, das mais importantes é a amizade". Em 306 a.C., já com seus 36 anos, Epicuro arrebanhou alguns de seus leais amigos e juntos adquiriram uma espécie de chácara nas cercanias de Atenas, onde fundaram uma escola, denominada Academia Jardim, formando com os discípulos uma sociedade autossustentável: plantavam e colhiam inclusive o próprio alimento. Não havia hierarquia e dedicavam o tempo essencialmente aos estudos e à reflexão. As refeições eram o momento de compartilhamento de todos, de celebração e alegria, pois era cultura da escola que mais importante que comer é com quem comer; alimentar-se sem a companhia de amigos é viver como um lobo.
Todavia, a realidade contemporânea tem imposto importantes reveses às amizades reais, verdadeiras. Um dos bons e representativos analistas dessa realidade foi o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), que chamou os atuais laços afetivos de líquidos, frágeis e individualistas. Ele refletiu em sua obra sobre as relações de amizades efêmeras do mundo das redes sociais onde tudo é fugaz: se sentia estupefato com as pessoas que têm 500 ou 1000 “amigos”, pois ele, que passou dos 90 anos, contaria nos dedos aqueles que chamaria de amigos.
Para Bauman, é um grande paradoxo, pois é um solitário em meio a uma multidão de solitários, um ecossistema onde “tudo é mais fácil na vida virtual, mas perdemos a arte das relações sociais e da amizade. Esquecemos o amor, a amizade, os sentimentos, o trabalho bem feito. O que se consome e o que se compra são apenas sedativos morais que tranquilizam seus escrúpulos éticos”. Prevalece o fast-food (não só o da alimentação), longe do apregoado por Epicuro. E o que será dessa geração quando chegar aos 50, 60, 70 anos, sem que tenham sido cultivados os amigos de verdade?
Jacir J. Venturi, professor, diretor de escola, autor de três livros e membro do Conselho Estadual de Educação do Paraná.